quinta-feira, 5 de agosto de 2010

Engolindo Sapos - o nosso jeito de alargar a garganta.

“Como é que um mundo virado de cabeça pra baixo sempre acaba se endireitando?” [Wilson]

Todos conhecem aquela velha história de que se colocarmos um sapo na água fervente, ele imediatamente tentará sair fora; no entanto, se lentamente o formos cozinhando, ele morrerá cozido na água quente praticamente sem esboçar reação.

Não sei se é verdade ou mentira, também não quero imaginar com que sadismo muitos resolveram testar isso para saciar sua curiosidade símia. No entanto, não é sobre o infeliz batráquio que quero me deter nesse post, mas sobre a irresponsabilidade humana de se aceitar enquanto o batráquio em questão.

Como foi que chegamos nesse ponto?

Sempre me detenho num ponto da história quando procuro exemplos que exemplifiquem a inépcia da razão: a ascensão, ápice e queda (?) do nazi-fascismo. Não sei se é uma fixação, mas quase sempre quando me ocorrem questionamentos sobre a nossa irracionalidade, é lá que vou fixar meu ceticismo sobre o coração humano.

Mais uma vez, sigo: Imagino uma população alemã ofendida & destruída por uma guerra promovida pelo orgulho de seu Estado. Essa população tem de engolir o peso (repassado, pois o peso recairia no Estado) do famigerado tratado de Versalhes. Inflação inimaginável, destruição, caos... são seres humanos submetidos, ora.

Antes de continuar, um detalhe: diferenciemos o povo, a população, do Estado alemão, e dos governos que advirão. Uma ideologia de Estado recai sobre um povo, ainda mais um povo naquela condição. Uma breve lida nos capítulos de livros escolares sobre este tema e saberemos de forma bastante simples que a ascensão de Hitler se deu através da propaganda e da eleição de bodes a expiar. Não é que o povo fosse inocente, não creio em inocência em gente adulta, mas a situação era bastante propícia inclusive para se expiar responsabilidades à quem quisesse abraçá-las – no caso, o Estado.

Um partideco saído de uma cervejaria começa a angariar popularidade, pregando o fortalecimento de uma Alemanha destruída, a recuperação de seu orgulho, de seu exército, investindo na idéia de um país superior para um povo superior como eram os arianos... a melhor cantada naquela mulher horrenda era a beleza do branco de seus olhos – conquistou-a e estuprou-a, mas quando foi que ela se deu conta?

Como pôde um povo que se dizia (ou que disseram por ele) tão superior, culturalmente instruído, deixar passar impunemente a perseguição e o assassínio de milhares, milhões de pessoas? Judeus, homossexuais, religiosos, intelectuais opositores, desertores, doentes... A maioria da população no mínimo desconfiava... Tantas evidências! E no entanto, deixavam passar...

Submetidos pela ideologia do Estado [mas também por algo de ruim que o espirito humano carrega], os alemães, antes rebaixados, viam-se num suposto esforço coletivo pela revalorização da Alemanha. Que se expulse um ou outro judeu, se é pelo bem da Alemanha. Eles vão ficar bem, estão indo para os campos, estão indo pra Polônia, estão indo trabalhar. Esses judeus vêm para a Alemanha e enriquecem às nossas custas, tomam nossos postos de trabalho! Um povo sem pátria, querendo tomar o mundo!

E assim, sob as vistas grossas dos alemães que confiaram ao Estado Força & Poder para tirar do caminho o que quer que fosse pelo bem da Alemanha, milhões de pessoas morreram – e foram extremamente humilhadas antes de morrer, por meses, por anos. Será que ainda eram humanos antes de morrer? Até onde vai a dignidade do ser humano? A pergunta é para o rapaz sentado na primeira fila, o do uniforme da Gestapo, bem ali.

Bem, isso é um exemplo.

Acho que ele explica bem como reagimos (ou melhor, não reagimos) ao estado de las cosas. O mundo não ficou pior de repente. Ele vem ficando pior ao longo dos séculos. O século XX foi absolutamente o século mais populoso, mais poluidor, mais violento (consideremos inclusive a violência indireta à continentes inteiros através do capitalismo), mais explorador, mais medonho, mais terrível e mais consciente de que estava fazendo tudo isso que qualquer outro. O século do pogreso.

É num contexto de capitalismo selvagem (graurrgh) que as pessoas já nascem. Já começa (como sempre) desiguais: nascer em berço de ouro ou em berço de outro. A competição começa na escola (os da escola pública... bem... competir com quem?) toca-se a vida preocupado ou com o vestibular ou com o que comer, arruma-se uma faculdade ou um emprego (ou uns bico). Disputa-se por amor, e por ódio, e por medo. Vive-se nessa vida cheia de aventuras! até a morte – que tempo para pensar nos outros!? Tem alguém passando fome? Vai procurar um emprego, vagabundo! Não tem vergonha nessa cara suja?

Nascemos numa água confortável, temperatura amena... caímos nesse mundo sem ter consciência dos trabalhos que teremos que fazer, das humilhações que teremos que passar, de quantos sapos teremos que engolir, de quantas liberdades teremos que abdicar, quantas vezes teremos que abaixar nossas cabeças, quantas vezes vão nos roubar moral e financeiramente, das doenças que vão nos infligir, das idéias que vão nos podar, das transas que vão nos brochar, das flores que nos vão abortar... aos poucos, bem aos poucos, vamos saindo do nosso charco umbilical, e vendo o mundo... vamos perguntando, vão nos semi-respondendo, e quando nos revoltamos, temos só parte de nossa geração a caminho (a menor!), e dezenas de outras ou dando os primeiros passos rumo ao questionamento ou já no processo de acomodação à sauna ao status quo.

A água vai ficando quente. Alguns adolescentes vão sentindo as cadeias que os prendem, pois se mexem. Sentem o peso de grilhões invisíveis – e não fazem idéia das toneladas de aço e concreto que os prendem a esta terra. Gritam, esperneiam, entram na fase adulta, a água vai esquentando, muitos já começam a parar, muitos espasmos, gritos, há ainda que tentar, vamos até a morte; a água já está insuportavelmente quente, mas à volta nenhum sapo reage... o sapo se vê sozinho e, fechando os olhos pensa: esses jovens, tsc tsc tsc...

As desgraças são tantas que vamos achando que é normal, que é habitual. Kundera comenta no livro A Cortina a respeito de um livro da primeira metade do século XX, onde um sujeito não suporta o som dos automóveis que começam a pipocar pelas cidades. Cada vez mais carros tomam as ruas e o sujeito já não consegue dormir. Muda-se para o interior, mas mesmo lá os carros começam a surgir, e com eles o insuportável som dos motores à combustão. No fim, o sujeito acaba dormindo em trens, viajando de um lado para o outro – o som dos trens lhe remete a tempos também barulhentos, mas aos quais ele já se acostumara.

Kundera é enfático: só nos damos conta enquanto é o começo de tudo. Vamos nos acostumando aos poucos, e nossos filhos já pegarão o bonde andando, nem ligarão. Durante a escravidão, muita gente sequer se perguntava sobre a dignidade dos negros. Durante o nazismo, apesar das evidências, ora, os judeus não tinham mesmo pátria, eram ricos e tomavam nossos empregos, então que saíssem por bem, se não quisessem ser expulsos por mal; durante o Brasil república, inúmeros escândalos de corrupção na política, mas são tantos... polícia que age como cão de caça, justiça para poucos, sub-empregos, baixos salários, sociedade do consumo quantitativo, a questão do lixo, dos menores abandonados, do crime organizado, das drogas e do aliciamento de menores... do imperialismo e do fanatismo, da hipocrisia não-praticante católica, do jeitinho e do suborno, da cerveja é da violência contra a mulher, dos acidentes no trânsito e do racismo, da homofobia e do trote, dos bancos de trilhões e dos trabalhadores de tostões... [mais reticências...]



...a água evaporou faz tempo: estamos, isto sim, é fritando na panela.



Mas tem quem goste do bronzeado.

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