terça-feira, 3 de agosto de 2010

Atabaques do Inferno: não há saída quando se cai no abismo que se é.

Estava pensando sobre Silêncio.


O velho Wilson, certa vez, comentou em seu mais conhecido livro, que tinha visto verdadeiras catarses coletivas resultantes da leitura em voz alta de poesias, ritmadas pela música ao fundo... Os poetas de rua, e daí já são pensamentos meus, seriam presos? Que efeito político suas poesias causam, quando movem uma turba que pára seus afazares para ouvir melodiosas palavras sublimarem ainda mais suas almas?

No Ocidente, a poesia escrita não é levada muito a sério como forma de aprofundamento-em-si coletivo. Lemos, sim, as poesias, mas quantas vezes nos sentimos tomados por elas? Imaginemos: se lêssemos uma poesia que muito amássemos para as pessoas na rua, será que elas se sentiriam tomadas como nós? ou será que tentariam interpretar a poesia de modo racional,ou será que ainda nos chamariam de loucos e nos mandariam tomar no cu? Não sei, mas nao consigo ver ninguém pegar na minha mão e dizer um elogio, ou qualquer coisa do tipo. Aqui preferimos ouvir coisas que não nos digam nada sobre nós mesmos, pelo menos não tão diretamente quanto um soco poético.

No Oriente, o silêncio é mais valorizado. Imagino que, quando uma palavra é dita, ela se faz necessária. Eis o valor que a poesia recitada pode ter: quer coisa mais importante contra a feiúra do mundo do que os jogos poéticos? É uma verdadeira válvula de escape, a verdadeira religião, a única coisa que faz mais sentido num mundo de menos sentido [e de muita continência].  Não estou generalizando; na verdade, penso que essa tradição está sendo massacrada pelo culto ao Caracinza. Mas, o silêncio vaga pelas ruas e fazendas, e inevitavelmente, esbarraremos nesse abismo quando menos esperarmos.

Já pensaste como as pessoas são apegadas aos sons? Quantas pessoas apreciam o silêncio e o cultivam como filosofia de vida?

Acho que o barulho é uma anestesia. Ele nos confunde de um jeito que gostamos, nos faz pensar em outras coisas. Quando estamos nas ruas, estamos com nossos MP3's; quando estamos em casa, sentamos-nos em frente a televisão (e muitos ibus só dormem se a televisão estiver monologando com eles); no comércio, gritaria & sofrimento com os alto-falantes malditos tentando nos convencer através de tímpanos danificados a longo prazo; entre amigos, é sempre necessário que as mandíbulas estejam trampolindo inúmeros perdigotos por sobre os acepipes e beberagens; enfim, o som deve estar presente.

Estar no silêncio é deparar-se consigo mesmo. Não é meramente um espelho, não há sequer imagens para se distrair. Cada segundo é um crescendo de um estalar de dedos até um tapa na própria cara. Vai-se dando conta de si mesmo e de que seus pensamentos são incompletos e bobos, de que está sempre faltando alguma coisa, e de que se é minúsculo, de que se existe uma ilha você não está nela - você está vendo-a, nada, nada e nada, e sente que nunca vai alcançá-la.

Há um certo medo de se ver no silêncio. Ninguém gosta de gente negativa.

Para não ficar sozinho nunca, o homem inventou deus(es) e amigos imaginários. Deus é um amigo imaginário mais completo por que, pelo menos em tese, te policia e te impede de pensar besteiras [pois você pensaria, se não estivessem te policiando]. Então você nunca estará na presença do que você é, mas daquilo que deve ser perante um deus que pode te punir ou te recompensar. Há um certo prazer escatológico nisto, talvez. Enquanto houver deus, o ser humano nunca estará sozinho: pode falar consigo mesmo como se estivesse falando com o super-ego, pode ir na igreja e se sentir aliviado por ter falado com deus [menos peso para carregar pro próximo pecado!], e também pode brincar de se esconder da onipresença e da onisciência quado comete seus pecaditos - viu? deus é o melhor amigo do homem [o segundo é a polícia].

Profundamente vazios - porém, altamente criativos, verdadeiros arquitetos de verdades universais! mas nada vence uma vida em silêncio. O nirvana é o silêncio, a consciência de si é silêncio. é a pura realidade de não ser nada, além do tudo - uno. Mas o nosso egumbigo precisa de barulho, precisa das luzes da cidade, precisa do show bizz!!

Imagino uma cena. Ela acorda as 5.30 da manhã com o rádio-relógio. Levanta-se, liga a TV e então desliga o rádio-relógio. Toma seu café da manhã enquanto troca de roupa, escova alguns dentes, pluga o fone no celular e ouvindo música, desliga a TV; sai. Vai ouvindo repetidamente a mesma playlist durante o longo trajeto de metrô e de ônibus e no longo caminho à pé. Chega no consultório, e se põe a falar as bobagens que fez no dia anterior, as notícias que ouviu no rádio, ou comentar o entretenimento barato da internet. Suas colegas de repetem o mesmo exercício de massacre ao silêncio pelo silêncio e só se calam quando sentem que precisam se fazer sérias pelo trabalho - mas estão no MSN, ouvindo música em fones minúsculos, cantarolando alguma coisa que não se sabe o quê [e nunca], mandando mensagens pelo celular, enfim: interagindo pelas palavras, de alguma maneira.

na hora do almoço o mesmo blá blá blá, a mesma ladainha, não se respeita sequer a comida que está na boca, que cai no prato sub-repticiamente, mas logo é coletada e tragada novamente. Tudo se repete até o fim do dia de trabalho, quando ela conecta de novo o plugue no celular e ouve as mesmas músicas no longo trajeto de volta pra casa, por horas a fio.

Entra em casa, liga a TV e então desliga o celular [a música; o celular nunca pode estar desligado]. Os tímpanos não podem parar, como os atabaques do inferno. Ouve a novela e o jornal enquanto prepara qualquer comida e espera até que tenha certeza de que o sono está tão forte que o tempo entre desligar-a-televisão-colocar-cabeça-travesseiro-REM seja irrisório. Não há silêncio sequer em seus pensamentos.

Um dia, porém, há um porém: ela chega em casa após o serviço, e percebe que não tem energia em casa. A bateria de seu celular acabara no metrô e ela já tivera que caminhar em sua própria companhia por vários quarteirões - experiência nada agradável. Ela vai para a rua, vai procurar pessoas [detalhe, ela costuma falar sozinha também]. Não se pode suportar uma noite inteira sem televisão, sem música, sem palavras. Vai para um barzinho, mas logo se enche - não se consegue ficar uma noite inteira num barzinho pela pura necessidade do barulho: uma hora ela tem que voltar: nem sempre suas amigas estão a fim de jogar conversa fora. Ela entra em casa, tateia a mesa, coloca sua bolsa. vai para o quarto, tateia a cama. se cobre e tenta dormir, afim de esperar para ver se a energia volta. não tem sono. Só tem ela, o peso do corpo e o breu da noite.

silêncio.

Repentinamente, ela lembra da mãe. Lembra que não a vê a meses. Lembra da forma carinhosa como a mãe a tratava e da forma rude que ela tornou-se. Não quer se lembrar. lembra, sem querer do ex-namorado, principalmente dos bons momentos, claro - mas não lembra de forma boa, mas com um peso no estômago - não quer lembrar de como acabaram. Lembra dos sonhos de infância, de que queria ser médica, mas acabou sendo secretária de um dentista e nunca mais sonhou de verdade. Pensou que estava com fome, mas lembrou de um programa que viu um dia antes na TV que mostrava cenas horríveis de crianças passando fome no nordeste [e que ela não mudou de canal por que não se sentiu ameaçada pelas imagens]. Lembrou que sua vida era medíocre e que nunca tinha vivido sequer UMA experiência que marcasse a vida dela de forma a ser inigualável. Lembrava que estava ficando velha, e que não tinha amigas de verdade, que seu salário não era suficiente e que morava num apartamento horrível. Lembrou-se dos irmãos, lembrou-se dos almoços de domingo, lembrou-se das brincadeiras... sentiu-se pequena e incompleta. Não sabia o que fazer, nem o que pensar. Queria dormir, mas a bateria de seu celular tinha arriado e ela não podia ouvir música para se distrair, não podia sequer ligar pra alguém. A noite caíra, e era perigoso sair. Tentou cantarolar, mas não lembrou de nenhuma música; tentou lembrar de cantigas de ninar, mas só pode cantarolar & grunhir. Sua voz estava embargada e pensava que nunca na vida queria se sentir tão só de novo: compraria um rádio à pilhas.
"E se você olhar longamente para um abismo, o abismo também olha para dentro de você" [Nietzsche]

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