segunda-feira, 23 de maio de 2011

O Cais e a Ideia como Adaga – transformando a História em Terra firme.



Eles tentaram de toda forma, em todos os tempos, sob as torrentes ou sob os sóis escaldantes, penetrar em nossas fortalezas, e sempre conseguiram. Por séculos fomos assediados, e bajo la violencia e principalmente por nossa fraqueza física, cedemos. Tempo ao tempo, os expulsávamos e erguíamos, ritualisticamente, supostas barreiras mais altas e mais fortes.

Enquanto festejávamos, eles preparavam novas invasões.

Não tardava, caíamos na rotina. A rotina é a memória preguiçosa, é o tempo ignorante no qual a história engolida fica no estômago, quieta, até causar ânsia de novo. Os dias amanhecem todos do mesmo jeito, e mesmo os dias santos não glorificavam nada além da nossa própria ignorância do porvir. Um dia – gozávamos no temor – tornava a chover fogo dos céus e troncos arrebentavam portas e cabeças. Era o prazer funesto de se ver arrancado de uma rotina de morte pela vivência da morte emergente.

O sangue que escorria pelas valas, até o meio das canelas, os invasores circulando em nossas fronteiras de cabeça erguida e zombando de nossas mulheres e crianças, homens e velhos, todos pagavam com seus corpos e mentes a sanha imoral daqueles que tornavam a nos submeter. Já se gozava menos a famigerada aventura a cada morte que se provava existente, a cada falta de uma querida mãe, de um querido filho, a cada alma que era sacrificada para nos forçar à rotas de comércio.

A história se repetiu, com algumas variantes em tempos, métodos, lugares, mas principalmente pessoas, pois os mortos, mesmo estando sob a categoria de supostos “derrotados”, não são as mesmas em suas “derrotas”. Apesar de passar quase como uma receita, a história aquietava-se nos estômago dos que viviam mais um pouco.

Disso se me lembra que a ignorância coletiva não foi superada com os tempos, e, nem mesmo com o pesar de tanta humilhação. Mesmo sabendo que nossas portas, apesar de fechadas, sucumbiriam aos arietes menos destros, foram os inimigos, os bárbaros que evoluíram em seus meios de dominação. Podiam arrebentar tudo, podiam massacrar a todos, podiam por a história em chamas – mas só ia por os malditos sobreviventes num regime de ódio e angústia. A mão pesada abandona o chicote e, num afago, interiorizamos o inimigo.

Cavalo-de-Tróia. A história foi transformada numa fábula, e deixamos de creditá-la como mais uma possibilidade estratégica. Aos que ignoram a história, ou mesmo o modo de usá-la para seu próprio bem, resta aceitar o poder de quem a detém, de quem a conhece, de quem a escreve – ou reescreve.

Fortaleza fechada. Família reunida. Janta-se, descanso. Sentamos, pois, com o invasor. Mensageiro das novidades mais distantes, ator convincente, reduz à pó não só nosso ouro, como nossa convivência, nossa inteligência. Mora na nossa sala, e o amamos como a nós mesmos. Que seria de nós sem as invasões bárbaras?

Saímos pela manhã para buscar o desjejum, a mensagem bárbara está cem vezes em nosso caminho. Compre isso, compre aquilo, seja assim, só é feliz quem tem, vem ser feliz, não dá pra ficar sem... a cidade deixou de ser nossa vida para se tornar mera rota de comércio, flui dinheiro e não vivências. Voltamos para nossa fortaleza sitiados por mãos que afagam nossos cérebros – e gozamos no temor, dessa vez, de estar socialmente morto.

A comunidade morta. Cadáveres circulam pela cidade em chamas que não se vêem. Mortos, se abraçam cada vez menos, beijam sem amor, já não há vontade. Filhos em decomposição, pais deteriorados. As muralhas da cidade estão bem fechadas. O inimigo, como boa mãe, mora agora dentro de nós, acarinha nossas ideias, nos aponta e faz contemplar o nada, amaciar a carne, somos humildes, aceitamos, cordeiros, compramos.

Chorei mil cadáveres de quando chovia fogo, de quando as invasões eram sinceras e os homens brutos se orgulhavam de mostrar a verdade que vieram defender. Choro tantos mil mais quando vejo que sacrifiquei a mim mesmo por décadas servindo ao inimigo que morava em minha casa, em minha mente, às suas senhas ocultas em cada propaganda, em cada gosto, em cada pote, em cada ideia, em cada conversa “amigável” - cala-te e aceita, calei-me e aceitei. Fomos atropelados pela história, ainda não a detemos, ela serve a quem a vislumbra. História é vida, e tal como ela, opcional.

Encontrei a receita-prima escondida em minhas ações, a grande história da humanidade, a história que foi engolida pelos historiadores, a história que serve cartograficamente aos vencedores.
Rememorei por séculos, por milênios, cada batalha travada entre os homens, e entre eles e a natureza. Caminhei por prados, florestas, desertos, bosques, oceanos, cada riacho, cada cachoeira, cada fiorde, sopraram-me as monções... comi sob deus e sob o diabo, mas não por eles – está-se entre os homens, está sob tudo o que é deles – espiei calado, a mente laborante. Escrevi e analisei cada tática, cada tragédia e descobrindo fui, cada inimigo, cada passo que é dado entre a vítima padecer ao algoz – ou até tornar-se o algoz. Conclui que a ignorância não é o fim, mas o meio por onde se propaga a derrota, a humilhação, a ruína da fortaleza, as portas abertas na vasta muralha de pedra.

Por meses, derivei. Ao mar, salguei com um longo pranto, e altos gritos bradei purgando o céu e a terra pela desgraça dos homens, pela minha desgraça. Os ventos e o mar me envolvem e estar perdido entre eles é estar encontrado consigo mesmo. Meus manuscritos, ao vento, voaram longe como pássaros-semente, fazendo ninhos em mentes muito além-mar, florescendo entre aqueles que os acolhiam, que os regavam. Entendi. Entendi que chegavam as folhas brancas, entendi que chegava a tinta vermelho-sangue que pingava de meu indicador, entendi que nem só de lágrimas e remorsos vive o homem, e munido das reflexões e de toda a história da humanidade – que compreendo em cada ideia transformada em ação e cada ação transformada em ideia, alço velas.

A tatuagem preta emerge em memória aos dilúvios que dissolveram a humanidade por dentro. Pesar aos irmãos e irmãs que, munidos apenas da inocência, foram devorados pela própria ignorância e pela ganância alheia. À memória deles voam milhares de papéis pelos tempos... mas só no gesto de agarrar tais memórias é que se respeita a existência dos que se foram – e dos que estão aqui, a morrer, agonizando. Tranquilizem-se vôs e vós: morre um, nascem mil.

Meu corpo como campo de batalha, meu navio, minha espada. Minha Jolly Roger conta o tempo de morte e me lembra que há vida. Esse é um recomeço, início da primavera, bons ventos me guiarão rumo ao Norte, ao meu Norte. Meus segundos virão palcos, a minha vida será o roteiro, serei já o Diretor. Uma chance, pela história. Ponho-me novamente entre os homens, terra firme, como nunca estive. Nunca mais perdido dentro de mim, tampouco encalhado. Elegi os inimigos, planejei sua derrota por Eras a fio, e, agora, estou entre eles. Reconheço, logo no cais, outros – dispersos na multidão -, outros que como eu, transformarão o cansaço em força. Sem palavras, nos compreendemos. Mãos sobre as adagas, dispersamo-nos, confiantes de que cumpriremos nossos papéis. Caminhando entre os homens tento, mas não consigo, conter o sorriso que machuca meu rosto, um sorriso feliz pela esperança de liberdade, de Liberdade...

Senhoras e senhores, o Primeiro Ato.