terça-feira, 21 de junho de 2011

Cavalo-de-tróia: dentro e fora de nossos templos.

Excesso de informação. Há muita coisa acontecendo no mundo ao mesmo tempo. A compressão do mundo causada pelo desenvolvimento das telecomunicações e dos transportes também trouxe à tona a consciência de que nossa capacidade de abraçar o mundo é restrita. O eufemismo “aldeia global”... não sabemos o que acontece sequer em nossa própria oca. Mas não nos importamos muito com isso. Há sempre alguém cumprindo seu papel até que nós possamos gozar do maior de nossos direitos – garantido pela civilização ocidental: o direito de consumir.


Numa mina de carvão, numa floresta temperada, num país colonizado, nas casinha do “pessoal da limpeza”, eles estão lá, cumprindo “seus papéis”. Uma infinidade de seres humanos “montando” cada um sua parte, o todo de nosso objeto de consumo. Ora, é apenas trabalho, alguns dirão, bem como eu trabalho na cidade, o sujeito lá trabalha numa mina de carvão. Ok. Direito ao trabalho, pois, certo?


Desembrulho o pacote. Abro a caixa. Está lá, envolto em plásticos, isopor, papéis, está lá, brilhante, opulento, misteriosamente poderoso, consistentemente místico, um notebook. Está lá, pronto. Depois de milhares de mãos, chegou às minhas por um preço razoável! Quem diria, que avanço da sociedade de consumo, um computador tão avançado na mão de alguém da classe C... o que aconteceu para isso vir parar nas minhas mãos? a) “votaram certo nas últimas eleições”; b) minha família soube economizar; c) eu soube investir nos lugares certos; d) estamos reciclando tecnologias não mais absorvíveis no primeiro mundo... bom, há uma infinidade de respostas e pseudo-respostas possíveis, mas poucas delas tocam num ponto essencial: sofrimento.


Tão bonito esse laptop. Tem mil coisas dentro dele, mil tecnologias que avançaram assombrosamente nas últimas décadas. Houve um dia em que o disquete era o suprasumo da tecnologia. Hoje um laptop comum tem 300.000 vezes a capacidade de um disquete... Pouco mais de uma década e veja a que tamanho reduziram o celular, o laptop, a parte interna da televisão... Aqui dentro tem lítio, tem cobre, ouro, silício, chumbo, magnésio, alumínio, enxofre, boro, carbono, uma infinidade de elementos compõem e recompoem-se dentro dessa “maravilha” da tecnologia moderna (ou talvez pós-moderna)... radioativos ou não, extraídos dos lugares mais distantes do planeta, a baixissimo custo. América central, América do sul, África, Ásia, Leste Europeu... Regiões em vias de desenvolvimento, em vias de exaustão. Extratores humanos expostos aos mais graves riscos de saúde para que uma pitada de cada um desses elementos maravilhosos venha parar num belíssimo laptop na América do Sul... uma só pitada em cada laptop. Milhões de laptops. Talvez bilhões.


Mas a gente compra - e se pensa numa coisa dessas, pensa: é só uma pitada. É só um laptop. É só mais um celular, mais uma televisão, mais um MP3, mais uma pilha, só mais um litro de óleo no ralo, só mais uma descarga, só mais um vizinho desperdiçando água, é só mais um carro, só mais bife no lixo, é só mais um cigarro, só mais uma queimada, só mais um defensor da floresta morto, só mais um cachorro morto de fome na casa alheia, só mais um bebê torturado nas mãos de uma babá despreparada, só mais um médico carniceiro, só mais um desgraçado que bate na mulher e nos filhos, é só mais uma cerveja, só mais uma pedra, mais uma carreira... e assim o mundo é feito, das somas mais simples... 1+1+1... bilhões de laptops. Bilhões de pessoas fodidas no planeta Terra.


Um bolo muito bonito. “Molhadinho”, chocolate escorrendo, uma cobertura de chantilly, um glacê contornando bonitos desenhos... longe da comemoração, bilhões de vacas estão presas à máquinas que sugam suas tetas com muito mais força que aquela de seus bezerrinhos – que aliás, estão mais longe ainda, confinados, cada um num cubículo, sem sol, com alimentação precária, afim de tornarem suas vidas apreciáveis – como vitela. De outro lado, bilhões de galinhas em regime de produção absoluta estão confinadas aos montes em gaiolas, sob luz 24h por dia, umas sobre as outras, vivendo sob excrementos umas das outras, alimentando-se umas das outras (via ração e via canibalismo por estresse), tudo isso para produzir um bolo mais fofinho aqui, um acompanhamento para sanduíche acolá, um ingrediente para alguma receita pra lá. Animais torturados durante toda uma vida, anos a fio, para que possamos gozar o sabor de suas mortes...


Uma “gostosona” rebolando em frente à câmera, um sujeito alto, forte e bombadão pega ela “de jeito” e depois de cinco ou seis indicações de posições do diretor, o alazão macula a face inocente de uma jovem colegial. Tudo isso de graça na internet. Viva a pirataria, então. Ela nunca se questionou sobre o que faz na frente das câmeras, muito menos ele, que é invejado por seus amigos; já ela tem vergonha dos pais, que não aceitam sua profissão. Ela é atriz pornográfica, mas nunca interpretou um papel com falas. Não importa se ela está preparada ou não, se ela está afim ou não, ela TEM que estar afim, senão... vai doer também fisicamente. Para o ator, uma ou duas pílulas e muita força de vontade. Diz-se que o salário compensa.


As coisas chegam até nós de um jeito muito bem acabado. Nós não nos questionamos o que está abaixo delas. Nossa sociedade produz as mais incríveis atrocidades para que possamos realizar nossas micro-fantasias e imaginar que nossos vazios existenciais estão preenchidos. Nós consumimos e somos consumidos para produzir coisas para os outros consumirem. Somos a máquina, somos o sistema, toda sua estrutura e mesmo as peças que não cumprem seu papel são absorvíveis, viram exemplo do “dont do it”.


Meu corpo é meu templo. O máximo de território sob o qual eu tenho algum controle é o meu corpo. Desde pequeno me entopem de entulho que insistem em chamar de comida, de brinquedo, de roupa, de tecnologia, de necessidade, me entopem de açúcar, de drogas, de óleo, de carnes encharcadas de hormônios, de venenos, de vegetais que exalam agrotóxicos, enfim, todo o aparato que é museu de nossa ignorância. Nunca nos questionamos, pois toda la gente hace el mismo. Questionar a si é questionar o status quo, toda a cultura ocidental moderna. Questionar o modelo de vida é por em dúvida todo o modelo de vida sob o qual bilhões de pessoas morreram na tentativa de erigí-lo. Não perguntar é honrar a morte de tantos cristos que morreram por nossos pecados.


Um dia, um tanto por impulso, peço a identificação de um carregamento que habitualmente recebia em meu templo. O entregador, confuso, foi obrigado a me explicar de onde tudo aquilo vem, como foi fabricado, por quem, e quanto me custa aceitar sua entrega. Recuso a entrega. Espalha-se pela região que meu templo é habitado por um louco que recusa o que todos aceitam. Meu templo vira alvo de chacotas de toda parte. Raros são aqueles que me interpelam na rua do comércio sobre as novidades em meu templo. Mas me sinto seguro em perguntar, e passo a fazê-lo sempre.


Tempos passam e a posição crítica aumenta. Me distancio cada vez mais da vila. Enquanto ela torna-se cidade, eu me aprofundo nos livros e cartas, recebo outros viajantes críticos – do tempo e do espaço - de outras partes que me contam de suas longas viagens e de seus próprios modos de enxergar o mundo. Todos tiveram suas cidades sitiadas, mas fecharam suas portas e resistiram o quanto puderam – muitos ainda resistem. Pela janela, vejo fumaça subindo em grossas colunas no horizonte da cidade – prédios lentamente acompanham a fumaça rumo aos céus. Choro à noite pensando nos meus que se esqueceram de se perguntar sobre aquele monte de entulho que vem de tão longe, sob tanto sangue, sob tanta humilhação, tanta ignorância... o mesmo laptop que me ajuda a estudar foi composto em esforço por uma multidão de pessoas que sequer sabe escrever. Aquele bolo tão saboroso custou uma vida de sofrimento à galinhas as quais nunca foi possível viver sua natureza. Aquele bife jogado na lata do lixo era parte de uma vaca que talvez nunca tenha alimentado um bezerro, vivido no pasto, sua própria natureza: ao contrário, só conheceu ferros quentes, biombos, esterco por toda parte e sal, muito sal, e um tiro de pressão, serras elétricas, seu próprio sangue.


Mas isso não é importante. O problema é que não se consegue viver sem o laptop, não se consegue viver sem a televisão, sem um celular novo, aquele tênis é bom pra coluna, bolo sem ovo “não cresce”, a gente precisa do leite, de onde vou tirar minhas proteínas, coca pro almoço, coca para viver... A gente simplesmente não pode conceber...


Dias obscuros advieram. Viajantes há muito não apareciam, minha comunicação ficou debilitada. Sofri em silêncio pensando estar só, a turbidez da água que passava pela cidade me fez questionar minha própria saúde mental, o ar agora num cinza visível se batia vigoroso por sobre minhas vidraças, nevavam cinzas lá fora... me agasalhei, pus a máscara e saí. Caminhei horas a fio, tremendo e fraco. Olho mais adiante, tentando ver além das cinzas que caíam, e vislumbrei uma bandeira num templo vizinho. Andei até lá, um tanto confuso... há muito não via bandeiras hasteadas. Bato à porta: “Quem és tu?” - choro de alegria “Eis que finalmente perguntam algo!”. Explico-lhe quem sou. A porta se abre e sou recebido com um carinhoso abraço: fui para ele exemplo, bem como outros foram exemplo para mim. Juntos tomamos chás de sua horta e, pesarosos, concluímos que para cada dez arranha-céus que se erguem, apenas uma bandeira insurreta se ergue temerosa – isto quando não abaixa.


Volto para casa de cabeça erguida, apesar da incômoda fuligem em meus olhos. Às portas de meu templo, dezenas de cavalos-de-tróia aguardam a menor brecha em meus portões. Adaga em mãos, em luto, passo entre eles orgulhoso, não lhes direcionando um olhar que seja – mas sinto-lhes bafejando aos meus passos. No meu pátio, do lado de dentro, sofro ao ver os cavalos-de-tróia que aceitei, que estão alí, mostrando minhas próprias fraquezas. Lembro de meu vizinho. Lembro dos viajantes. Sinto algo tocar minhas costas – um raio solar. A minha volta, só fuligem empesteando meu ar. O sol me toca, sim, mas de dentro.


Lembro de Quixote. Simpatizo com ele. Entendo aqueles que na rua do comércio me dizem, rindo-se entre os dentes “vais boicotar a tudo, mas como vais boicotar a fome?”. Seríamos tão fortes... às vezes lhes proponho questionamentos, mas não querem pensar no que estão fazendo. Carregam tanto entulho em suas costas que se os descessem para analizá-los não conseguiriam colocar tudo de volta às costas sozinhos (e ninguém lhes ajudaria, também). Talvez por isso eu tenha podido questionar tão “cedo” - nunca tive nada do que me despir, nem tanto a questionar. A verdade é que estava no básico, quando questionei o básico. Quando desci o que estava às minhas costas eram apenas meus hábitos.


Já não atendo à porta sempre. Sei diferenciar a batidas de gente de verdade das de soldados. Aguardo o dia em que poderei sair pelo portão da frente de meu templo e ver o sol para além de tantos gigantes cavalos-de-tróia. Enquanto isso, preparo minhas malas, serei também viajante a levar as boas novas, como foram um dia para mim. Adaga na cintura, bolsas às costas... rodo as chaves no meu indicador. Penso no meu navio... afasto o pensamento. Voltar para o mar? Não, é preciso pisar as ruas da cidade.